2007-04-26

Maus-tratos

Leonor chegou a casa com o seu sorriso característico.
O Verão estava a terminar, mas o calor ainda persistia. Leonor trazia as faces ruborizadas, que contrastavam com a sua tez clara. A ladeira que antecedia a sua casa, tornava-se um calvário num dia quente, mas Leonor não perdia o seu ar afável enquanto a subia. Parava para cumprimentar todos os que conhecia, mesmo que as suas mãos latejassem pelo peso das compras que trazia.
Entrou. Poisou os sacos no chão da sala e tentou que os dedos enrugados voltassem lentamente ao lugar. A idade dificultava esse processo. Sentou-se no cadeirão e esperou que a sua respiração, também, estabilizasse.
Foi quando Álvaro entrou de rompante, batendo a porta da entrada. Leonor estremeceu, deixando esmorecer o seu sorriso, em prol do ar temeroso que só o marido conhecia.
Leonor sempre escondera de todas as pessoas, até mesmo dos filhos, as agressões de que era vitima há muitos anos. As escoriações e as equimoses seriam sempre sinónimo das quedas que sofria dada a sua avançada idade, nunca da violência doméstica que a atingia.
Esquecendo a falta de ar e as guinadas nos ossos, levantou-se tentando aparar Álvaro, que o álcool tentava derrubar. Nele aprendera a esconder a vergonha de um despedimento numa idade em que jamais conseguiria outro emprego, na Leonor despejava a ira de não ser capaz de lutar por mais nada.
Esta tarde não foi diferente das outras, e sem qualquer pudor ou misericórdia espancou uma vez mais Leonor, expiando toda a sua raiva naquela mulher que, outrora, tinha amado, e que segundo ele jurava, ainda era a “paixão da sua vida”.
Leonor não imitia qualquer som, enquanto levava uma surra. Desejava que ninguém desconfiasse o que se passava dentro da sua casa. A vergonha encurralava-a. A pena que sentia da infelicidade do marido, que se revelava na sua mudança de atitude, entristecia-a. A tentativa para que todos acreditassem na sua frágil felicidade, extenuava-a.
A sua maior preocupação quando começaram os maus-tratos era esconder as partes do seu corpo em que poderiam ser visíveis as marcas da agressão. Com o passar do tempo e com a sua permissividade à violência exercida, o grau de crueldade agravou-se, e Leonor tentava, somente, proteger os seus órgãos vitais para não sucumbir.
Era assim que se poderia observar Leonor, agora, deitada perto dos sacos das compras, após um chuto nas débeis canelas, que a derrubou. Agarrada à cabeça protegendo-se de um pontapé que lhe era direccionado, foi-lhe infligido outro na barriga. Contorceu-se. Gemeu baixinho, enquanto a brutalidade de Álvaro pedia gritos de dor. Mesmo que quisesse fazê-lo, já não conseguiria. A bata, com flores pequeninas, que tinha vestida era agora vermelha, inundada pelo sangue que brotava do seu corpo num clamor de revolta. Álvaro dominado pelo álcool que lhe percorria o sangue, transpirava do esforço exercido no espancamento, alheio ao facto de Leonor se estar a esvair.
Leonor já não estava ofegante, já não tinha as faces rosadas, já não se obrigava a calar os seus gritos, porque já não sentia a dor. A sua tez estava cada vez mais pálida, e ela apercebeu-se que a morte estava perto. Foi então que esboçou um sorriso, não o seu sorriso característico, mas um que lhe vinha da alma.Álvaro parou quando lhe reparou na expressão. Leonor estava feliz, finalmente, tinha coragem para o abandonar...mesmo que tivesse de ser assim!

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Voo

Quando o final chega algo nos aparta a alma. Seja o final duma relação, dum estágio, dum bom filme, de algo que nos soube bem.
Mesmo quando as coisas correm mal, por hábito, ou por lembranças remotas fica sempre um gostinho amargo na boca, e nem sempre é fácil um reaprender a voar.

Sabes quando uma lágrima corre pelo rosto?
Sabes quando já não aguentamos a dor que nos invade o peito?
Sabes quando gritamos a chorar porque não aguentamos mais?

Sabes quando no fim de tudo isso,
já não tens lágrimas,
não tens gritos,
e não sabes se ainda sentes dor?

Sabes o que é o abismo?
Sabes o que é não chegarmos a saltar e ficarmos a contemplá-lo com medo?
Sabes o que é passar o medo e atirares-te descobrindo que sabes voar?
Sabes o que é não quereres voltar a pousar?
Sabes o que é descobrir que queres voar porque simplesmente receias regressar?
Eu sei e foste tu que me ensinaste.

2007-04-24

Paraplégico

Uma viagem intensa
Ao fundo da sua existência
Um momento celebrado
Com orgulho e persistência

Uma luta diária
Sem angustias nem tristezas
Numa vida vivida cheia de certezas
Sem ligar a preconceitos
Encara os seus defeitos
Como provas e não provações
Consolidando paixões

Sem andar pelo seu pé
Com muitas dificuldades
Encontra muitas barreiras
Mas vive sem ansiedades

Conheci-o de passagem
Num quarto de hospital
Para ele uma viagem
No percurso espiritual

E se alguém o conhecer
De certo irá entender
Porque vive espalhando amor
Mesmo habitando com a dor

Ama a vida com verdade
Aceita com serenidade
O que o destino lhe reservou
Numa cadeira sentado
E a isso confinado
Tornou-se um ser superior
Com uma aura de amor

E se isso não for melhor
Que me digam os “perfeitos”
Se não será bem pior
Viver-se com outros defeitos?

http://www.snripd.pt (Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência)

Nunca poderia o meu blog começar sem referência à minha maior inspiração de vida: o meu filho.

Para ele, o meu primeiro poema:

Momento intenso aquele que vivemos
Não nos interessavam os que estavam em redor
Não importava mais nada que não fosse o amor
Só nos dois o sabemos...

Descobrimos as feições
Olhámo-nos e
Amámo-nos sem restrições

O elo físico foi cortado
Mas nunca o sentimento apagado

No nosso primeiro olhar de descoberta
O abrir duma porta secreta

Uma ligação para sempre
Verdadeira e leal
Agora, sem cordão umbilical

Numa felicidade incontida, chorei
Numa nova vida que encontrei

Em paz e com um novo sentimento
Vivi a glória do teu nascimento