2008-01-31

DEFICIÊNCIAS

'Deficiente' é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino. 'Louco' é quem não procura ser feliz com o que possui. 'Cego' é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria, e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores. 'Surdo' é aquela que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês. 'Mudo' é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia. 'Paralítico' é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda. 'Diabético' é quem não consegue ser doce. 'Anão' é quem não sabe deixar o amor crescer.
E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois: A amizade é um amor que nunca morre.

Mário Quintana

Será



Pedro Abrunhosa

Para ti




Sei que nunca partiste


Porque nunca aqui estiveste


Jamais te entregaste a este


ou a outro Amor




Não me importo


Eu vivi-o da forma mais pura e intensa


Que alguém possa imaginar




Mas, hoje, outro corpo adormecido e exausto


pairava a meu lado num campo neutro


de paixão de corpos, e de almas dormentes




Revivi cada caricia tua


Nas mãos de outro homem


E, incessantemente, procurei a tua pele


descobrindo o teu cheiro


que a minha memória não quis apagar




Guardo o teu abraço,


o teu beijo,


o cheiro da tua pele


E todas as gotas de suor do amor que tive e fiz contigo




Apaguei as tuas ofensas e as palavras mais duras


E tenho-te trancado nas minhas memórias mais seguras




2008-01-22

2008-01-18

Ao meu pai


Lembro-me do dia em que adoeceu como se fosse hoje, e creio que terei esse registo sempre presente. Embora o meu pai não tenha melhorado muito, nós aprendemos a conviver e a aceitar a situação como nos foi sendo possível, através de uma longa e demorada aprendizagem de ambas as partes, algumas vezes dolorosa mas ainda assim sempre activa.
Nesse tempo ainda vivia com os meus pais, e recordo-me de sentir algum alvoroço no quarto deles, senti que a minha mãe estava a falar desordenadamente e num tom alterado. Recordo-me de ter saltado da cama, mas estar longe de imaginar o que estaria a acontecer. O meu pai estava deitado no chão, tinha caído aquando tentava sair da cama, e não mais se conseguiu levantar. Não se entendia nada do que dizia, estava com a voz imperceptível, tinha a boca e a facis deformada, rapidamente, entendemos que estava sem qualquer sensibilidade do seu lado direito.
Enquanto a minha mãe tentava decifrar o que estava a acontecer e tentava ajudá-lo, corri para o telefone a chamar uma ambulância.

Quando a ambulância partiu com o meu pai e a minha mãe, fiquei encostada à soleira da porta, a tentar que o chão não me fugisse, todos sentimos que algo de mal se estava a passar, ainda que não entendêssemos muito bem o que seria um AVC, ou pelo menos, que não soubéssemos as sequelas daí provenientes.
Comecei a rezar a Deus para ajudar o meu pai, não sei se por ele, se por mim, se por todos nós, afinal, ele era uma peça fundamental do puzzle da nossa família.
Aquela espera parecia-nos infindável, a minha mãe telefonava sempre que podia e trazia-nos a noticia que o meu pai estaria estável, mas enquanto não pudéssemos estar com ele a nossa angústia iria persistir. Afinal, o que quereria dizer “estável”?
Durante horas, a minha mãe manteve-se incontactável e eu e a minha irmã estávamos muito nervosas.

Estava habituada ao colo do meu pai que estaria incapaz de mo dar e quem sabe a precisar dos meus mimos...

Uma das imagens que guardo, foi quando a minha mãe chegou: sozinha, com um saco transparente, onde se podia ver o pijama do meu pai, assim como os seus chinelos, o seu robe, e na mão trazia a aliança dele. Temi pelo pior, mas não consegui dizer nada, notei que a minha mãe tinha estado a chorar, mas que tinha bebido uma dose excessiva de calma, para nos conseguir transmitir tudo com tranquilidade, de forma a não entrarmos em pânico.
Queria ter coragem para lhe perguntar se o meu pai tinha morrido, mas nem conseguia verbalizar tal pensamento, ficava preso na garganta como um nó. Rapidamente a minha mãe descodificou um pouco as nossas trocas de olhares, dizendo que o meu tinha de ficar internado, estava com a tensão arterial muito elevada, e nem os famosos comprimidos sublinguais, a que o meu pai nos tinha habituado a vê-lo usar com alguma frequência, o tinham ajudado neste dia. E foi assim que repetiu o AVC na urgência do Hospital de S. José. Foi nesse momento, há alguns anos atrás, que a nossa vida mudou.
Aquele nó na garganta estava cada vez maior.
À noite, cerrei os olhos com força mas não consegui desprender-me da realidade para que pudesse adormecer. Estava em sobressalto e ouvia o eco da voz da minha mãe a perguntar ao meu pai o que estava a acontecer, porque ele tinha caído, etc., como se tudo se estivesse repetir. Recordava-me da minha mãe com as duas alianças no dedo, e tudo aquilo ganhava dimensão no meu coração e ocupava-o com angústia.
Quando o cansaço estava prestes a vencer-me tocou o telefone, e o meu coração disparou, quando ouvi ser do Hospital o medo percorreu-me o corpo e fiquei estática à espera de ouvir o que teriam para me dizer. Informaram-me da transferência do meu pai para o Hospital de Sta. Marta, e não me adiantaram mais nada.
E eu tinha tantas dúvidas, queria tanto esclarecê-las para poder adormecer, queria tanto poder ir ao quarto e encontrar lá o meu pai, dar-lhe muitos beijos, e deitar-me a seu lado enquanto víamos os programas do Nathional Geographic. Mas ele não estava, estava algures numa maca, ou numa cama de um quarto de hospital, rodeado de estranhos, sem se conseguir mexer ou expressar, e essa imagem martirizava-me o espirito.
Aguardámos ansiosas pelas 15 horas para que o pudéssemos visitar, mas os minutos não passavam, a ansiedade não controlava os ponteiros do enorme relógio pendurado na parede da sala de espera das visitas. Porque é que ninguém nos vinha dizer nada? Explicar como o meu pai estava, ou prevenir-nos para não sermos apanhadas de surpresa, do estado em que o iríamos encontrar. Sentíamo-nos perdidos naqueles corredores brancos.
As visitas começavam a aproximar-se da porta onde estava uma senhora de bata branca, que distribuía umas senhas mediante um número que se dava, que correspondia ao da cama do doente.
Ficámos para o fim, pois a única informação que tínhamos seria a do nome do meu pai, para que nos dissessem tudo o resto. Aproximámo-nos. A minha mãe disse o nome do meu pai.

“- Cama 22, mas só poderão entrar duas pessoas.”

Seria tão complicado entender que éramos três e que estávamos desesperadas na ânsia de o poder rever. Pensei que preferia que fosse a minha irmã

"- Até te agradeço que vás na frente, pois falta-me a coragem, sinto as pernas trémulas. Vai, mas não demores muito, traz-me notícias do pai, de preferência boas, e diz-lhe que estou aqui, que tenho saudades dele e que entro de seguida para o abraçar e lhe dar muitos beijos.”

Fiquei a observá-las a desaparecerem nas portas, conseguia ver o ar assustado com que procuravam a porta do quarto que tivesse a indicação do número da cama do meu pai, o 22, aquele número ficaria a martelar para sempre na minha cabeça. Reparei também, que a minha mãe tinha os ombros caídos do cansaço ou do receio. Ela tinha sido a única que o viu quando ele piorou, e sabia como o deixara. A minha irmã saiu minutos depois, de cara meio enfiada, e deu-me a senha.

“- Não me deixes neste sufoco e diz-me como é que ele está...

- Está mal, Elsa. Não entendo nada que ele diz, não me conheceu, acho que até está... desfigurado. Vai lá, miúda, pode ser que a ti, ele te reconheça.”

Tinha razão. Ainda não tinha entrado quando vi a minha mãe, sentada ao lado da cama a segredar-lhe algo. Com alguma dificuldade rodou a cabeça, e pude confirmar o que a minha irmã me tinha dito. O meu pai tinha a boca toda arrepanhada dum dos lados, e abria muito os olhos na tentativa de conseguir ver alguma coisa. Percebi que estava de fralda e algaliado. Quando tentou murmurar alguma coisa pouco perceptível, percebi que tinha a voz completamente atrofiada, e rapidamente percebi que o seu cérebro seria o mais afectado, mais que os seus músculos que não respondiam aos estímulos.
No fim de algum esforço em tentarmos compreender o que nos tentava dizer, percebi que estava a perguntar quem eu era. Tentei-me controlar, mas não consegui, saí para o corredor, onde estive a chorar. A minha mãe veio ao meu encontro na tentativa de me consolar. Sabia que nós tínhamos uma relação muito próxima, e que estava a ser muito difícil para mim. Tentei encontrar alento nas palavras da minha mãe.

“- Já entro, deixe-me ficar aqui um pouco, a recuperar o fôlego e alguma serenidade.

- Está bem, querida. Eu sei que te está a custar muito, mas sei também, que és muito forte e que és capaz. Sei também que o teu pai precisa de todos nós, e que vamos lá estar. Não é?

- É.”

Fiquei a olhar para o jardim interior do Hospital, reparava na quantidade de doentes que passeavam ali com os seus familiares. A maioria deles arrastava o lado direito. Um dia, o meu pai estaria assim, mas naquele momento que vivíamos nem se conseguia levantar, mesmo que tivesse vontade, o seu corpo estava “morto” e o seu raciocínio lento e perturbado.
Regressei ao quarto. A minha mãe disse-lhe ao ouvido quem eu era, e ele perguntou-lhe porque é que eu estava a chorar...não conseguiria entender a minha resposta, mesmo que tivesse esperado por ela.
Curiosamente nunca se esqueceu da minha mãe. Todos os dias repetia as mesmas perguntas, todos os dias lhe relembrava o meu nome, e o nosso parentesco, e ele todos os dias se esquecia.
Mas quando começou a recuperar a fala, contava-me como passava as horas que estava sozinho, fazendo grandes dissertações sobre os seus companheiros de quarto. Podia não saber que eu era sua filha, mas gostava de falar comigo, e isso trazia-me algum conforto. Era um exercício complicado tentar entender o que me dizia, mas nunca desisti, pedia-lhe para falar mais pausadamente para que não se enrolasse tanto. E ele explicava-me o que tinham sido as suas refeições, o que tinha feito durante a noite, etc. Tudo era fruto da sua imaginação, fazia-me relatos de Angola; das suas refeições, que não eram nada mais que comida passada e sopas com espessantes (dada a sua má deglutição), na sua descrição seriam sempre manjares extraordinários, compostos por tudo que ele verdadeiramente gostava.

O mundo dele e o nosso, dois mundos diferentes e distantes, que se reencontravam três horas por dia quando nós abandonávamos o nosso e entrávamos no dele. Chego a acreditar que terá sido melhor assim, para que ele alheado não sofresse tanto com a certeza que lhe estava atribuída. Quem sabe não foi uma defesa natural da percepção ao estado do seu corpo?


Sabes Pai, foi há 17 anos que tudo isto aconteceu, e ainda não consegui esquecer essa data de Agosto de 1991 em que essa doença maldita te roubou de mim tal como eras. Agradeço a Deus por estares, ainda, comigo. E, desculpa, se tantas vezes tenho saudades daquilo que eramos, por que me fazes falta.

À minha avó Antónia

A minha avó era uma pessoa linda, com pouca riqueza material, mas com um espírito repleto de grandeza, guardava nele toda a sabedoria duma vida traduzida em amor e espiritualidade.
Lembro-me que sempre que a visitava, há uns anos atrás, ela ficava a acenar-me um doce adeus na esquina de sua casa. Era uma grande mulher em todos os sentidos. Lembro-me que quando criança achava que ela era enorme, de acordo com a evolução natural da vida, fui crescendo e ela tornou-se mais pequenina do que eu, mas nem notei. Para mim, ela continuava com a sua mão enorme e marcada da enxada, a perder a rudez dos seus actos em cada adeus e em cada beijo que me dava. E continuava tão grande!
A doença foi tomando conta do corpo dela, e os seus acenos passaram para a janela da sala, depois para a do quarto, e mais tarde para o hospital até deixar de acenar, e sermos nós que nos despedíamos dela. Mas não a vi minguar, pois conhecia-a desde sempre e mantive essa imagem. Guardei todos os seus “adeus”, e esqueci-me do último pois não consigo ou não quero lembrar.

Ódio

Ódio por Ele? Não ... Se o amei tanto,

Se tanto bem Ihe quis no meu passado,

Se o encontrei depois de o ter sonhado,

Se à vida assim roubei todo o encanto,


Que importa se mentiu?

E se hoje o pranto

Turva o meu triste olhar, marmorizado,

Olhar de monja, trágico, gelado

Com um soturno e enorme Campo Santo!


Nunca mais o amar já é bastante!

Quero senti-lo doutra, bem distante,

Como se fora meu, calma e serena!

Ódio seria em mim saudade infinda,

Mágoa de o ter perdido, amor ainda!

Ódio por Ele? Não... não vale a pena ...


Florbela Espanca

2008-01-11

What I've done


Linkin Park


Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia
Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram
Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!
Meu amor meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procurado seu próprio lamento.
Meu limão de amargura meu punhal a crescer
nós parámos o tempo
não sabemos morrer e nascemos do nosso entristecer.
Meu amor meu amor
meu pássaro cinzento
A chorar a lonjura do nosso afastamento
Meu amor meu amor
meu nó de sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento
Este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar.


Ary dos Santos


2008-01-09

Para Sempre

Passagem de um livro que gosto de reler...


“Rita,

Já entendi que não me queres ouvir e que optaste por não responder às minhas mensagens, ou aos meus telefonemas. Estás magoada, eu sei.
Ainda pensei esperar-te à porta de casa, mas ponderei, e percebi que não podia impor a minha presença. Quando nos reencontrarmos será de mútuo acordo, e de assumida vontade de ambos. Também, não impuseste a tua presença quando eu precisei sair. Simplesmente deixaste-me seguir a minha vontade.
Mas tenho estado a pensar na nossa história, e por defeito de convivência contigo a escrever um esboço dos meus pensamentos. Espero que os leias, que não os rasgues antes de os tentares entender.
Ao olhar para ti pela primeira vez, não imaginava o mar de sentimentos em que a minha vida iria mergulhar.
Também, penso, que não era suposto que acontecesse.
Sabes bem, que nunca mergulho sem botija, ou pelo menos sem uma boa golfada de ar...
Não te imaginei minha, pelo menos não logo, nesse primeiro olhar.
Deixei-me cativar pelo teu ser, que me proporcionou bem-estar e foi transformando os meus dias. Pela tua alegria contagiante. Por essa tua força interior, que sensibiliza e conforta.
A esse encanto não pude resistir, de tal maneira, que me deixei ir pelo embalo.
Foi bom. Experimentei uma sensação única. Pela primeira vez não conquistei, mas também não me senti conquistado, não gosto de o ser. Deixei fluir e apercebi-me como podia ser diferente, gratificante.
Até que cheguei a esse oásis, e tomei consciência que dele não queria mais partir. Senti-o tão intensamente...como se de repente, tudo à minha volta se tornasse num deserto imenso e inóspito.
Parecem voláteis os sentimentos...
Nunca imaginei que deixasses de gostar de mim. Para falar a verdade, esse sentimento atemoriza-me.
Comecei agora a entender outras perspectivas dessa relação que entretanto se foi solidificando. Confesso que cheguei a pensar que o nosso desejo era desigual, mas de qualquer forma inabalável. Que independentemente do que pudesse acontecer, nada o iria fazer mudar.
Enganei-me. Deixei de te olhar nos olhos, da mesma forma que o fazia em momentos de paixão. Ainda assim, seguia sem questionar algo que para mim se foi confirmando, de dia para dia como uma certeza, mas muitas vezes e por força das circunstâncias, menos sentida. Só agora percebo que essa inevitabilidade pode ser a nossa maior inimiga.
E num clique, tudo muda?
Não sei, mas para mim mudou. Mudou para muito melhor. Sinto-o assim. Fizeste-me senti-lo. Cheguei a estar adormecido, apenas com a noção que éramos dois a seguir um único caminho, que a pouco e pouco se vai sulcando pelo destino.
Deixei de sentir essa inevitabilidade. E à custa de quê?
De imperfeições que nos atormentam, mas das quais não podemos, muitas vezes, fugir. Do egoísmo que não conseguimos, em tantos momentos, ultrapassar. Agora, deixei de me sentir acomodado.
Muitas vezes não é tranquilo, chega mesmo a ser difícil, mas ainda assim, faz-nos tomar consciência da sorte que, de um momento para o outro, nos bateu à porta.
Volta para mim.
Do teu sempre,
Diogo”

Fiquei a ler a tua carta. Tinha o teu cheiro. Conseguia entender muita coisa, outras esforçava-me para perceber e não conseguia.
Senti que nos envolvemos da mesma forma, que compartilhámos o mesmo sentimento durante muito tempo, até ter mudado a tua forma de olhares para mim. Sentiste-me de outra maneira, algo mudou, mas não mo disseste, preferiste sair de mansinho, deixando-me a tua ausência e a minha forma de te amar, que não se alterou.
Ganhaste consciência da sorte que te bateu à porta, quando bateste a da minha casa, virando-me as costas? Deixaste de te sentir acomodado ao teu egoísmo e às tuas imperfeições, quando te afastaste? Achas que me acho perfeita? Que não sou minimamente egoísta? Pois digo-te que sou, tenho consciência disso e luto todos os dias para que isso não agrida terceiros, só que ainda assim, não me preciso afastar de ti para ganhar noção de todos estes itens .
Não foi o destino que foi sulcando o nosso caminho, fomos nós. Assim como foste tu que escolheste sulcar outro longe de mim. Eu sigo o meu trilho e tu segues o teu.
“Não te imaginei minha, pelo menos não logo, nesse primeiro olhar.”, nem eu. Não pensei que algum dia me pudesse sentir de alguém, sentir que a minha vida me pertence mas também te pertence. Sabes o que me aconteceu quando saíste repentinamente da minha vida? Parafraseando-te, tiraste-me a botija, e nem me deste tempo para eu conseguir uma boa golfada de ar....fiquei sem respirar, a lutar para não me afogar, para que os meus pulmões não se enchessem de água, para que pudesse sobreviver ao maremoto que provocaste. Poderia responder-te com todos estes meus pensamentos, mas não o vou fazer, tal como tu não o fizeste quando mudaste a tua forma de me olhares e resumiste tudo num “não sei se te amo”. Não é vingança, não é mesquinhice, é apenas a resposta ao teu apelo de “Volta para mim”. Não, não volto, porque o meu trilho agora ruma a outro destino, vou-o sulcar sozinha, ainda a recuperar o fôlego do ar que me roubaste.

2008-01-07

Intemporal e arrepiante

Emma Shapplin

Bolo-Rei

Ontem, foi Dia de Reis e, embora não tenhamos a tradição do país vizinho em celebrar o 6 de Janeiro, ainda mantenho a tradição de comer bolo-rei nesse dia.
Engraçado é o facto de eu não apreciar o dito bolo, mas ainda assim não desistir de o comer mesmo que retire todas as frutas cristalizadas...

Este ano recordei a fava e o brinde que desistiram de colocar dentro do bolo, e senti saudades desse tempo... da felicidade que tomava conta de mim quando mordia um pouco de papel vegetal que embrulhava um corno, ou uma figa que alguns dias depois jazia no balde do lixo.
Quando me calhava a fava e ninguém via, voltava a "espetá-la" dentro do bolo, adorando a sensação de poder ver quem cortava a fatia seguinte (garantidamente, não era eu!).

Acho que é por isso que continuo a comer um bolo que não gosto.
Quebrou-se a fantasia de poder ter em minha casa reunida toda a minha família em dias especiais, pois a vida vai separando alguns, mas os sonhos e as recordações ficam sempre num porto seguro longe do roubo das fantasias... quem sabe, guardados em papel vegetal num bolo que é só meu!