2007-08-28

Meninos Coragem

Setembro chegou. Com ele regressam uns tratamentos dolorosos que faço, anualmente, na clinica de Navarra.
Poucos sabem que a verdadeira força interior que me julgam detentora, chegou de fora. Num olhar de ternura e amor dum estranho.
Certa vez, nessa clinica, a meu lado estava uma criança linda, um menino magro, sem cabelo e de semblante triste que reclamava em silêncio a sua sorte, sem perder a doçura no olhar.
Eu, com os meus trinta anos, também, me sentia indefesa e insegura naquele lugar frio e impessoal. Percebemos, que algo mais nos unia do que a doença e ficámos fixamente a entre olharmo-nos durante todo um tratamento. Estendeu-me a mão. Ofereci-lhe a minha.
O meu tratamento acabou primeiro que o dele que começara antes de mim. Antes de sair, beijei-lhe a testa. Vi-o chorar. Pedia-me, em silêncio, que não o abandonasse ali. Sentei-me junto a ele e fiquei até ao momento em que o recolheram à enfermaria na companhia da mãe.
Onde quer que estejas, gostava que soubesses que guardo esse momento até hoje, na certeza que não tenho o direito de me lamentar!

2007-08-22

Poema a Boca Fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei
Pois que a língua que falo é doutra raça.

Palavras consumidas se acumulam
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vasa de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em me não conhecem.

Nem só lodos a se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quanto me calei,
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago

2007-08-07

Hate me







Blue October

2007-08-03

Amo-te tanto, meu amor...não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Nunca, sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de amar assim muito amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes

Gostar de mim


Estava um nevoeiro cerrado
Numa noite sem igual
Num céu pouco estrelado
A lua brilhava celestial

O que o meu coração sentiu
Almejou guardar o momento
Preservando o sentimento
De experimentar não pensar
E disso poder gostar

Poder tremer
Poder chorar
Poder sofrer e me revoltar

Nesse momento entendi
Que o que eu gostei e vivi
Foi a verdade de ser
E nela permanecer

Vivendo cada paisagem
Cada cheiro, cada imagem
Num horizonte sem fim
Poder repousar e gostar de mim

2007-08-01

Moçambique


O avião aterra.
Desço as escadas e ponho os pés na cidade que me viu nascer e da qual não guardo memória.
O cheiro a terra quente molhada é me familiar.
Abandonei Moçambique em criança e muitos anos depois, ainda, me sinto em casa.
Percorro as ruas de carro enquanto observo crianças que tomam banho em pequenos charcos que a chuva arquitectou, mas que o sol abrasador que já espreita ousa evaporar.
O lixo acumula-se porque não há recolha, e o cheiro nauseabundo, por vezes, torna-se insuportável.
Assomo-me do centro de Maputo, e em plena Avenida Julius Nyerere, perscruto todos os edifícios recordando-os de fotografias do álbum de recordações e das histórias contadas em jantares de família. Tudo está na mesma com trinta anos de desgaste e falta de manutenção.
Sou alertada para os cuidados a ter para lidar com os locais. Oiço todas as recomendações. Mas sou apenas mais um deles, e no meio de tanta coisa má, aquela cidade é linda e ficaria ali para o resto da vida a descortinar a panóplia de cores e cheiros que me estimula os sentidos. No regresso trago comigo o sabor do caranguejo, o som das marrabentas, a pele queimada, e a saudade daquela gente maningue chunguila...
Carta premiada na Revista Volta ao Mundo

Cores


Hoje o dia amanheceu diferente
O sol brilhava intensamente
Num céu azul nunca dantes visto
Vi pássaros e flores
Num mundo de muitas cores

O mesmo livro que ontem lia
tornava-se, hoje, uma bonita alegoria
neste momento que vivo
e que me inspira alegria
A noite já não é escura
pois a lua está presente

Posso contemplar as estrelas
e tê-las eternamente...

Esse meu mundo cinzento
em que vivi no passado
foi um necessário unguento
para esta visão de cores
da vida e de seus amores

Hoje olho para a frente
segura de estar feliz
honro a minha existência
com cores que outrora não quis