2008-01-18

Ao meu pai


Lembro-me do dia em que adoeceu como se fosse hoje, e creio que terei esse registo sempre presente. Embora o meu pai não tenha melhorado muito, nós aprendemos a conviver e a aceitar a situação como nos foi sendo possível, através de uma longa e demorada aprendizagem de ambas as partes, algumas vezes dolorosa mas ainda assim sempre activa.
Nesse tempo ainda vivia com os meus pais, e recordo-me de sentir algum alvoroço no quarto deles, senti que a minha mãe estava a falar desordenadamente e num tom alterado. Recordo-me de ter saltado da cama, mas estar longe de imaginar o que estaria a acontecer. O meu pai estava deitado no chão, tinha caído aquando tentava sair da cama, e não mais se conseguiu levantar. Não se entendia nada do que dizia, estava com a voz imperceptível, tinha a boca e a facis deformada, rapidamente, entendemos que estava sem qualquer sensibilidade do seu lado direito.
Enquanto a minha mãe tentava decifrar o que estava a acontecer e tentava ajudá-lo, corri para o telefone a chamar uma ambulância.

Quando a ambulância partiu com o meu pai e a minha mãe, fiquei encostada à soleira da porta, a tentar que o chão não me fugisse, todos sentimos que algo de mal se estava a passar, ainda que não entendêssemos muito bem o que seria um AVC, ou pelo menos, que não soubéssemos as sequelas daí provenientes.
Comecei a rezar a Deus para ajudar o meu pai, não sei se por ele, se por mim, se por todos nós, afinal, ele era uma peça fundamental do puzzle da nossa família.
Aquela espera parecia-nos infindável, a minha mãe telefonava sempre que podia e trazia-nos a noticia que o meu pai estaria estável, mas enquanto não pudéssemos estar com ele a nossa angústia iria persistir. Afinal, o que quereria dizer “estável”?
Durante horas, a minha mãe manteve-se incontactável e eu e a minha irmã estávamos muito nervosas.

Estava habituada ao colo do meu pai que estaria incapaz de mo dar e quem sabe a precisar dos meus mimos...

Uma das imagens que guardo, foi quando a minha mãe chegou: sozinha, com um saco transparente, onde se podia ver o pijama do meu pai, assim como os seus chinelos, o seu robe, e na mão trazia a aliança dele. Temi pelo pior, mas não consegui dizer nada, notei que a minha mãe tinha estado a chorar, mas que tinha bebido uma dose excessiva de calma, para nos conseguir transmitir tudo com tranquilidade, de forma a não entrarmos em pânico.
Queria ter coragem para lhe perguntar se o meu pai tinha morrido, mas nem conseguia verbalizar tal pensamento, ficava preso na garganta como um nó. Rapidamente a minha mãe descodificou um pouco as nossas trocas de olhares, dizendo que o meu tinha de ficar internado, estava com a tensão arterial muito elevada, e nem os famosos comprimidos sublinguais, a que o meu pai nos tinha habituado a vê-lo usar com alguma frequência, o tinham ajudado neste dia. E foi assim que repetiu o AVC na urgência do Hospital de S. José. Foi nesse momento, há alguns anos atrás, que a nossa vida mudou.
Aquele nó na garganta estava cada vez maior.
À noite, cerrei os olhos com força mas não consegui desprender-me da realidade para que pudesse adormecer. Estava em sobressalto e ouvia o eco da voz da minha mãe a perguntar ao meu pai o que estava a acontecer, porque ele tinha caído, etc., como se tudo se estivesse repetir. Recordava-me da minha mãe com as duas alianças no dedo, e tudo aquilo ganhava dimensão no meu coração e ocupava-o com angústia.
Quando o cansaço estava prestes a vencer-me tocou o telefone, e o meu coração disparou, quando ouvi ser do Hospital o medo percorreu-me o corpo e fiquei estática à espera de ouvir o que teriam para me dizer. Informaram-me da transferência do meu pai para o Hospital de Sta. Marta, e não me adiantaram mais nada.
E eu tinha tantas dúvidas, queria tanto esclarecê-las para poder adormecer, queria tanto poder ir ao quarto e encontrar lá o meu pai, dar-lhe muitos beijos, e deitar-me a seu lado enquanto víamos os programas do Nathional Geographic. Mas ele não estava, estava algures numa maca, ou numa cama de um quarto de hospital, rodeado de estranhos, sem se conseguir mexer ou expressar, e essa imagem martirizava-me o espirito.
Aguardámos ansiosas pelas 15 horas para que o pudéssemos visitar, mas os minutos não passavam, a ansiedade não controlava os ponteiros do enorme relógio pendurado na parede da sala de espera das visitas. Porque é que ninguém nos vinha dizer nada? Explicar como o meu pai estava, ou prevenir-nos para não sermos apanhadas de surpresa, do estado em que o iríamos encontrar. Sentíamo-nos perdidos naqueles corredores brancos.
As visitas começavam a aproximar-se da porta onde estava uma senhora de bata branca, que distribuía umas senhas mediante um número que se dava, que correspondia ao da cama do doente.
Ficámos para o fim, pois a única informação que tínhamos seria a do nome do meu pai, para que nos dissessem tudo o resto. Aproximámo-nos. A minha mãe disse o nome do meu pai.

“- Cama 22, mas só poderão entrar duas pessoas.”

Seria tão complicado entender que éramos três e que estávamos desesperadas na ânsia de o poder rever. Pensei que preferia que fosse a minha irmã

"- Até te agradeço que vás na frente, pois falta-me a coragem, sinto as pernas trémulas. Vai, mas não demores muito, traz-me notícias do pai, de preferência boas, e diz-lhe que estou aqui, que tenho saudades dele e que entro de seguida para o abraçar e lhe dar muitos beijos.”

Fiquei a observá-las a desaparecerem nas portas, conseguia ver o ar assustado com que procuravam a porta do quarto que tivesse a indicação do número da cama do meu pai, o 22, aquele número ficaria a martelar para sempre na minha cabeça. Reparei também, que a minha mãe tinha os ombros caídos do cansaço ou do receio. Ela tinha sido a única que o viu quando ele piorou, e sabia como o deixara. A minha irmã saiu minutos depois, de cara meio enfiada, e deu-me a senha.

“- Não me deixes neste sufoco e diz-me como é que ele está...

- Está mal, Elsa. Não entendo nada que ele diz, não me conheceu, acho que até está... desfigurado. Vai lá, miúda, pode ser que a ti, ele te reconheça.”

Tinha razão. Ainda não tinha entrado quando vi a minha mãe, sentada ao lado da cama a segredar-lhe algo. Com alguma dificuldade rodou a cabeça, e pude confirmar o que a minha irmã me tinha dito. O meu pai tinha a boca toda arrepanhada dum dos lados, e abria muito os olhos na tentativa de conseguir ver alguma coisa. Percebi que estava de fralda e algaliado. Quando tentou murmurar alguma coisa pouco perceptível, percebi que tinha a voz completamente atrofiada, e rapidamente percebi que o seu cérebro seria o mais afectado, mais que os seus músculos que não respondiam aos estímulos.
No fim de algum esforço em tentarmos compreender o que nos tentava dizer, percebi que estava a perguntar quem eu era. Tentei-me controlar, mas não consegui, saí para o corredor, onde estive a chorar. A minha mãe veio ao meu encontro na tentativa de me consolar. Sabia que nós tínhamos uma relação muito próxima, e que estava a ser muito difícil para mim. Tentei encontrar alento nas palavras da minha mãe.

“- Já entro, deixe-me ficar aqui um pouco, a recuperar o fôlego e alguma serenidade.

- Está bem, querida. Eu sei que te está a custar muito, mas sei também, que és muito forte e que és capaz. Sei também que o teu pai precisa de todos nós, e que vamos lá estar. Não é?

- É.”

Fiquei a olhar para o jardim interior do Hospital, reparava na quantidade de doentes que passeavam ali com os seus familiares. A maioria deles arrastava o lado direito. Um dia, o meu pai estaria assim, mas naquele momento que vivíamos nem se conseguia levantar, mesmo que tivesse vontade, o seu corpo estava “morto” e o seu raciocínio lento e perturbado.
Regressei ao quarto. A minha mãe disse-lhe ao ouvido quem eu era, e ele perguntou-lhe porque é que eu estava a chorar...não conseguiria entender a minha resposta, mesmo que tivesse esperado por ela.
Curiosamente nunca se esqueceu da minha mãe. Todos os dias repetia as mesmas perguntas, todos os dias lhe relembrava o meu nome, e o nosso parentesco, e ele todos os dias se esquecia.
Mas quando começou a recuperar a fala, contava-me como passava as horas que estava sozinho, fazendo grandes dissertações sobre os seus companheiros de quarto. Podia não saber que eu era sua filha, mas gostava de falar comigo, e isso trazia-me algum conforto. Era um exercício complicado tentar entender o que me dizia, mas nunca desisti, pedia-lhe para falar mais pausadamente para que não se enrolasse tanto. E ele explicava-me o que tinham sido as suas refeições, o que tinha feito durante a noite, etc. Tudo era fruto da sua imaginação, fazia-me relatos de Angola; das suas refeições, que não eram nada mais que comida passada e sopas com espessantes (dada a sua má deglutição), na sua descrição seriam sempre manjares extraordinários, compostos por tudo que ele verdadeiramente gostava.

O mundo dele e o nosso, dois mundos diferentes e distantes, que se reencontravam três horas por dia quando nós abandonávamos o nosso e entrávamos no dele. Chego a acreditar que terá sido melhor assim, para que ele alheado não sofresse tanto com a certeza que lhe estava atribuída. Quem sabe não foi uma defesa natural da percepção ao estado do seu corpo?


Sabes Pai, foi há 17 anos que tudo isto aconteceu, e ainda não consegui esquecer essa data de Agosto de 1991 em que essa doença maldita te roubou de mim tal como eras. Agradeço a Deus por estares, ainda, comigo. E, desculpa, se tantas vezes tenho saudades daquilo que eramos, por que me fazes falta.

2 comentários:

Panda disse...

Beijo a ti.

Obrigado por partilhares isto comigo ... e com quem aqui vier. É bom saber que há sentimentos, puros.

Obrigado tambem pelo exemplo que tens sido para muita gente; exemplo de coragem, de força de vontade, de vontade de vencer.

Beijos

Unknown disse...

Só hoje li esta "abertura" de coração e senti um arrepio na pele...

"Eramos tão pequenos" e penso tenhamos crescido excelentes seres Humanos.

Jinho